segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Véritas Mentiras

Trazia-a sempre consigo. Devotava-a infinitamente. Ouvir sua voz de quando em quando era para ele um momento de glória, um sinal de que ela não o abandonara. Até mesmo quando dormia, ela continuava ali e, foram raras as vezes em que, ao acordar e procurando-a não a encontrou a seus pés, olhando-o de soslaio. E ainda assim, se não estivesse ali era só chamá-la e ela prontamente se fazia presente. Gostava disso: ela lhe era cativa, submissa, assim pensava.
Ah, a verdade! Sua vida sem ela não fazia sentido, sem ela suas atitudes seriam vazias, seus objetivos de nada valeriam. Ah, a verdade! Sempre a perseguira e agora que a tinha não pretendia deixá-la nunca. Mantinha com ela uma relação íntima: ela sabia de seus segredos mais bem guardados e ele a sondava cada vez mais. Como era bom deixar a verdade percorrer seus músculos, seus nervos, suas veias. Navegar suas artérias e adentrar seu coração e cérebro, invadindo também aquela área abstrata, responsável, no entanto, pelas coisas chamadas concretas. Seu pensamento era todo verdade. Depois que a cativara, sua vida tornara-se toda verdade. E assim ele vivia: um segundo de mentira era inadmissível. E sabia que, se por acaso trocasse um olhar sequer com a mentira, se culparia pela eternidade. A própria verdade se ocuparia de acusá-lo para sempre. Então, evitava aborrecimentos.
No entanto, os anos passaram rápido, a idade avançou e a verdade amadureceu junto com ele. Quando adoeceu e padeceu as agruras da carne por causa de sua velhice, a verdade foi sua melhor enfermeira. Enquanto ele dormia no leito do hospital, ela se mantinha em pé, ao lado da cama, segurando sua mão. O calor da verdade lhe consolava e afagava seu coração. Já não se importava com seu fim eminente, menos ainda se outra vida havia depois dessa que vivia. Se houvesse também seria de verdade eternamente e, caso não houvesse, não importava; havia vivido intensamente cada instante.
No ultimo dia, o fatídico dia que, desenganado pela junta médica sabia que morreria muito em breve, ao acordar, não encontrou a verdade; ela partira. Na mesa que ficava ao lado da sua cama havia um bilhete que ela deixara. Foi com muito esforço que conseguiu pegá-lo e com sofreguidão e a vista a lhe embaraçar que leu com lágrimas nos olhos. A reação a seguir foi um nó na garganta a lhe tirar a respiração e um cessar instantâneo das batidas do coração. O atestado de óbito acusava como causa mortis uma parada cardiorespiratória, apesar do câncer que supostamente o haveria de matar. O bilhete deixado pela verdade antes de sua partida dizia o seguinte:
“Caro Luis, por toda sua vida lhe fui fiel, mas não seria justo te enganar até o último instante, sou a sua verdade tão somente, que você construiu a partir de mentiras tidas como verdades. Sua vida foi uma grande mentira vivida como se fosse verdade. Adeus. Deixo-te com a única verdade que de fato existiu: de sua maior inimiga que sou eu, a mentira, você se fez amigo e eu nada mais fiz que retribuir, enquanto que aquela que pensava ter, a verdade de verdade, você sempre desprezou e agora já não pode mais alcançá-la. Descanse em paz. Essa é minha verdade para você”.

A moral dessa crônica deixo para você leitor tirar. Só espero que, como a personagem da história, Luis, não acredite estar concluindo uma mentira por verdade. De fato, há que se considerar que, uma mentira pode ser vista como verdade e vice-versa.