segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Os amantes


Estava lívida. As intuições a se embaraçarem com a consciência. Muitas ideias lhe vinham à cabeça. Talvez fossem à procura de explicação para o que acabara de acontecer. Nem tivera tempo de olhar o esboço do rosto que há alguns minutos estivera ao alcance de suas mãos e lábios. Saíra correndo sem olhar para trás. Aquela praça, aquela brisa suave eram-lhe agora o que a acalmava, o que fazia seu coração voltar a bater no ritmo certo, porque por um instante de tempo pensou que este haveria de lhe sair pela boca. Agora tentava acalmar as ideias e colocar sua consciência em paz. Afinal, nada acontecera ainda. Estremeceu com essa expressão que lhe rodou o pensamento. Ainda era a afirmação de que algo poderia vir a acontecer. Não entendia, mas ao mesmo tempo queria entender o que estava acontecendo com ela. Seu casamento já durava quase dez anos e amava seu esposo, disso não tinha dúvida. Ele era para ela tudo: companhia, porto seguro, cumplicidade e etc. Ele sempre lhe fora bom e bem sabia que assim continuaria a ser, até o fatídico dia da separação inevitável. Mas agora estava ali, com a consciência a lhe cobrar um beijo que nem chegou a acontecer, pois fugira antes. Como entender o que estava acontecendo? Sentia um turbilhão de ideias a lhe embaraçar o pensamento, ao mesmo tempo em que um misto de sentimentos lhe varava o coração. Sempre gostara de aventuras e não seria esse mais um de seus caprichos para se aventurar? O risco lhe enchia de adrenalina e ela gostava disso, bem sabia.
Recordava agora como foi o início de tudo. Aqueles olhares trocados durante o expediente. Ele era seu colega de trabalho e até então, nada lhe havia passado pela cabeça. Ele era apenas um colega, nem amigo era. Mas depois daquele dia em que ele a olhou diferente, algo despertara dentro dela. E as trocas de olhares se acenderam e se tornaram em brasa e constantes. Ela sempre o achara bonito, atraente.Ele, por sua vez, já estava quase se casando. Sempre afirmou amar sua noiva e ser com ela que iria se casar. Nisso estavam iguais: o amor pelo seu esposo era inquestionável.
E tudo culminou no que acabara de acontecer. Ela estava só na sua sala quando ele entrou e se aproximou...
-Aurélia!- seu nome expressado de forma tão doce a fez arrepiar e amolecer ao mesmo tempo. Suas pernas bambearam e ela ficou sem ação. Ele chegou mais perto e pegou em suas mãos que estavam geladas e suadas. Automaticamente ela se soltou e lhe segurou o rosto. Seus olhares se fundiram e quando tudo parecia que iria se consumar, ela se esquivou.
-Não posso, Alexandre!- e afastou-lhe a face. Pegou sua bolsa e com a desculpa de que precisava ir ao banco, correu a se refugiar naquele canto da praça que lhe era tão familiar. E ali estava até agora.
Olhou para o relógio, ainda dispunha de algum tempo. Recompôs-se e com passos firmes e olhar altivo retornou ao trabalho. Havia decidido esquecer aquele episódio, talvez pensando que cérebro humano funcionasse como memória de computador, um ctrl T e um delete e tudo estaria resolvido.
O restante do dia passou sem novidades e ao chegar em casa, encontrando seu esposo tão sorridente e carinhoso a lhe esperar, imaginou que deveria lhe contar tudo, mas numa fração de segundos, esqueceu essa possibilidade. Não havia acontecido nada e mesmo que houvesse não podia estragar seu casamento com isso.
Outros dias se passaram e as trocas de olhares continuaram, só que agora ainda mais ardentes, e ela foi se convencendo de que precisava provar daquela boca. Afinal, só precisava de um beijo e este não deixa marcas, nem arranca pedaços. Nas primeiras vezes que pensava nisso, sua consciência ainda a alertava para o risco de seu casamento se acabar se ela gostasse desse beijo e quisesse mais e cada vez mais e sempre mais. Com o passar do tempo, porém, isso também passou. Seu esposo continuava bom e alheio a tudo e ela o continuava amando.
Numa sexta-feira, Alexandre se aproximou e perguntou:
-Você sabe que dia é hoje?
-Não-respondeu secamente, mas sabia que era seu aniversário.
-Hoje é meu aniversário e gostaria de ganhar um presente seu...
Ela corou. Suas faces queimaram e, sem encará-lo balbuciou:
-E que seria esse presente?
-Um beijo...
Ela o encarou. Seus olhos verdes eram doces, ternos, pedintes. Sua boca estava entreaberta, mostrando seus alvos dentes, que faziam par perfeito com seus lábios carnudos e vermelhos.
Foi numa fração de segundos e ela sentiu a boca de Alexandre colada na sua. Sentiu-se lânguida com a consciência a lhe apitar alguma coisa. Que se danassem as demagogias sociais, e os contratos, e os acordos, e a razão, e a sua própria consciência. Que se danasse tudo. Não podia mais correr, fugir, se esconder, se esquivar. Então fechou os olhos e entregou-se toda naquele beijo...

sábado, 8 de agosto de 2009

Liberdade não se come


O sol ainda nem havia nascido e Bentinho já se colocava em pé. Estava tão acostumado a essa vida e com seus "deveres" para com o patrão que fazia tudo muito direitinho; até mesmo de olhos fechados se preciso fosse. Levantar cedo, ordenhar as vacas, levar o leite para sua mulher que trabalhava na casa do patrão preparar o café. Depois ir para o roçado e trabalhar o dia todo sob o sol escaldante, só parando para se alimentar ou saciar a sede; ou ainda para atender alguns caprichos inadiáveis da natureza humana. Gostava da vida que levava e nunca parava para pensar se haveria amanhã; afinal avida vinha sendo generosa para ele: todo dia tinha o que comer e com isso seus filhos cresciam fortes, tão diferentes dos de seus antepassados ou até mesmo de alguns de seus irmãos de sangue que morreram de fome.
Quando o sol se punha, Bentinho voltava do roçado trazendo nas costas sua enxada e nas mãos os sinais de muitas ervas daninhas extintas. Depois de se banhar e degustar um naco de carne seca com uma boa medida de farinha, o que lhe era dificultado pela presença de poucos dentes, Bentinho se reunia com os filhos e a mulher em volta de uma fogueira no terreiro da casa. Aí os "causos" se tornavam a atração da noite e prendiam a atenção de todos. Saci-pererê, boi-tatá, lobisomem, assombração: cada noite um causo diferente. Aproximada as vinte e duas horas, todos se recolhiam, inclusive Bentinho e sua mulher Iraci e, quando o cansaço não atrapalhava, colocavam pimenta na sopa do casamento. E se amavam rindo, antes de caírem no pesado sono dos justos. No outro dia, tudo recomeçava. E assim vivia Bentinho.
Conta-se que ele havia fugido do Quilombo uns dias antes da sua invasão e destruição. Era ainda um meninote e preferiu viver, pois vivo sabia que poderia lutar e quem sabe vencer. Iraci ele conhecera em suas andanças pelas vilas. Não era bonita nem feia, mas cativara o coração de Bentinho e ele o dela. Numa madrugada qualquer de um dia ainda não nascido que já não se lembra mais a data, Iraci abandonou a casa de seus pais e fugiu com Bentinho. Andaram um bom tempo a esmo, até que Genésio, um rico fazendeiro os acolheu. Em troca dos trabalhos que fariam, ele lhes daria comida, um salário minguado e uma choupana para morar. Pouco tempo depois os filhos vieram e Iraci mais Bentinho se afeiçoaram àquela rotina já descrita anteriormente.
Um certo dia porém, a rotina se desfez. O patrão havia mandado chamar Bentinho antes mesmo dele ordenhar as vacas. Encostado na porta da biblioteca do patrão e com o chapéu na mão, ele assimilou uma por uma as palavras que ouviu:
-Olha Bentinho- começou Genésio- desde que chegou aqui já se vão quinze anos e parece que foi ontem mesmo. Andei fazendo umas contas- disse- e a situação não anda nada boa. É por isso que não posso mais te manter aqui. Tirei do banco ontem, uma boa soma de dinheiro suficiente para você começar a vida em outro lugar. E aqui está-afirmou entregando um grande maço de notas novas a Bentinho e complementou- você está livre agora. Vá-se embora. Vá cuidar de sua vida.
Um pouco triste, Bentinho pegou aquele maço e, enquanto se dirigia para casa afim de contar a nova para os filhos, um sonho de outrora lhe passou pela memória:há alguns anos desejara viver na cidade. Seus olhos se iluminaram e em apenas dois dias, ele se mudava juntamente com sua mulher e trupe de filhos para uma vida nova.
Assim que chegaram à cidade, Bentinho alugou uma casa e começou a procura emprego, mas este não se permitia ser encontrado. O tempo passou e o dinheiro minguou. Os filhos agora maiores comiam mais, o que fazia com que o dinheiro se esvaísse muito rapidamente. Até que o fatídico dia chegou. Genésio enxergou d elonge na estrada aquela procissão e reconheceu Bentinho e sua família a alguns metros do casarão. Com a cara deslavada, Bentinho pediu abrigo: agora ele e Iraci trabalhariam apenas a troca de casa e comida. A única explicação dada por Bentinho quando questionado por Genésio a respeito do regresso foi essa:
-A gente não come liberdade, patrão! A gente não come liberdade!