sábado, 8 de agosto de 2009

Liberdade não se come


O sol ainda nem havia nascido e Bentinho já se colocava em pé. Estava tão acostumado a essa vida e com seus "deveres" para com o patrão que fazia tudo muito direitinho; até mesmo de olhos fechados se preciso fosse. Levantar cedo, ordenhar as vacas, levar o leite para sua mulher que trabalhava na casa do patrão preparar o café. Depois ir para o roçado e trabalhar o dia todo sob o sol escaldante, só parando para se alimentar ou saciar a sede; ou ainda para atender alguns caprichos inadiáveis da natureza humana. Gostava da vida que levava e nunca parava para pensar se haveria amanhã; afinal avida vinha sendo generosa para ele: todo dia tinha o que comer e com isso seus filhos cresciam fortes, tão diferentes dos de seus antepassados ou até mesmo de alguns de seus irmãos de sangue que morreram de fome.
Quando o sol se punha, Bentinho voltava do roçado trazendo nas costas sua enxada e nas mãos os sinais de muitas ervas daninhas extintas. Depois de se banhar e degustar um naco de carne seca com uma boa medida de farinha, o que lhe era dificultado pela presença de poucos dentes, Bentinho se reunia com os filhos e a mulher em volta de uma fogueira no terreiro da casa. Aí os "causos" se tornavam a atração da noite e prendiam a atenção de todos. Saci-pererê, boi-tatá, lobisomem, assombração: cada noite um causo diferente. Aproximada as vinte e duas horas, todos se recolhiam, inclusive Bentinho e sua mulher Iraci e, quando o cansaço não atrapalhava, colocavam pimenta na sopa do casamento. E se amavam rindo, antes de caírem no pesado sono dos justos. No outro dia, tudo recomeçava. E assim vivia Bentinho.
Conta-se que ele havia fugido do Quilombo uns dias antes da sua invasão e destruição. Era ainda um meninote e preferiu viver, pois vivo sabia que poderia lutar e quem sabe vencer. Iraci ele conhecera em suas andanças pelas vilas. Não era bonita nem feia, mas cativara o coração de Bentinho e ele o dela. Numa madrugada qualquer de um dia ainda não nascido que já não se lembra mais a data, Iraci abandonou a casa de seus pais e fugiu com Bentinho. Andaram um bom tempo a esmo, até que Genésio, um rico fazendeiro os acolheu. Em troca dos trabalhos que fariam, ele lhes daria comida, um salário minguado e uma choupana para morar. Pouco tempo depois os filhos vieram e Iraci mais Bentinho se afeiçoaram àquela rotina já descrita anteriormente.
Um certo dia porém, a rotina se desfez. O patrão havia mandado chamar Bentinho antes mesmo dele ordenhar as vacas. Encostado na porta da biblioteca do patrão e com o chapéu na mão, ele assimilou uma por uma as palavras que ouviu:
-Olha Bentinho- começou Genésio- desde que chegou aqui já se vão quinze anos e parece que foi ontem mesmo. Andei fazendo umas contas- disse- e a situação não anda nada boa. É por isso que não posso mais te manter aqui. Tirei do banco ontem, uma boa soma de dinheiro suficiente para você começar a vida em outro lugar. E aqui está-afirmou entregando um grande maço de notas novas a Bentinho e complementou- você está livre agora. Vá-se embora. Vá cuidar de sua vida.
Um pouco triste, Bentinho pegou aquele maço e, enquanto se dirigia para casa afim de contar a nova para os filhos, um sonho de outrora lhe passou pela memória:há alguns anos desejara viver na cidade. Seus olhos se iluminaram e em apenas dois dias, ele se mudava juntamente com sua mulher e trupe de filhos para uma vida nova.
Assim que chegaram à cidade, Bentinho alugou uma casa e começou a procura emprego, mas este não se permitia ser encontrado. O tempo passou e o dinheiro minguou. Os filhos agora maiores comiam mais, o que fazia com que o dinheiro se esvaísse muito rapidamente. Até que o fatídico dia chegou. Genésio enxergou d elonge na estrada aquela procissão e reconheceu Bentinho e sua família a alguns metros do casarão. Com a cara deslavada, Bentinho pediu abrigo: agora ele e Iraci trabalhariam apenas a troca de casa e comida. A única explicação dada por Bentinho quando questionado por Genésio a respeito do regresso foi essa:
-A gente não come liberdade, patrão! A gente não come liberdade!

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KKKKKK...essas discussões prometem...por favor comentem!!!